sábado, 21 de março de 2009

Excerto de "Se Isto é um Homem", de Primo Levi

Nota:Primo Levi, químico de formação, judeu italiano nascido em Turim em 1919, descobriu o verdadeiro significado de ser judeu em 1944. "Se Isto é um Homem" é um livro admirável que relata o testemunho de 11 meses em Auschwitz. Não é mais um livro sobre o Holocausto. Trata-se, muito simplesmente, de uma descrição objectiva do dia-a-dia de um prisioneiro que tenta não se esquecer que é um ser humano - "lavar o rosto todas as manhãs, mesmo sem água e sem sabão, é a única maneira de se manter humano", confidenciou-lhe um velho prisioneiro judeu que não sobreviveu. Como diz Teresa de Sousa, "é um comovente ensaio sobre a natureza humana". Seleccionei este excerto por me parecer aquele que, de entre muitos, se destaca pelo substracto simplesmente humano que o autor quis dar à sua obra. Não quis diabolizar os seus carrascos, apenas relatar a sua humanidade em face de um ambiente adverso. Poderá um homem sobreviver ao facto de ter sobrevivido a Auschwitz? - pergunta Teresa de Sousa. E com razão. Porque, e nas palavras de Jorge Semprún, outro escritor sobrevivente das fábricas de morte nazis_ que só conseguiu testemunhar sobre os anos que passou em Buchenwaldt num livro a que chamou "A Escrita ou a Vida"_, "escrever é a única salvação, mas escrever é também a única impossibilidade".
22 de Janeiro
"(...)A noite reservou-nos surpresas desagradáveis.
Lakmaker, da cama debaixo da minha, era um pobre farrapo humano. Era (ou fora) um judeu holandês de 17 anos, alto, magro e bondoso. Estava na cama há três meses, não sei como tinha escapado às selecções. Tivera sucessivamente o tifo e a escarlatina; entretanto, detectaram-lhe uma grave falha cardíaca, e estava cheio de chagas, ao ponto de só poder estar deitado em cima da barriga; apesar de tudo isto, tinha um apetite feroz; falava exclusivamente holandês, nenhum de nós estava em condições de o perceber.
Talvez a causa de tudo tivesse sido a sopa de couves e nabos, de que Lakmaker quisera duas rações. A meio da noite gemeu, depois atirou-se da cama para o chão. Tentava alcançar a latrina, mas estava demasiado fraco e caiu, chorando e gritando alto.
Charles acendeu a luz ( o acumulador demonstrou-se providencial) e pudemos constatar a gravidade do acidente. A cama do rapaz e o chão estavam sujos. O cheiro no pequeno local tornava-se rapidamente insuportável. Apenas tínhamos uma reserva de água mínima, e não tínhamos cobertores nem enxergões de sobra. E o pobre doente de tifo era um terrível foco de infecção; nem se podia deixá-lo toda a noite no chão a gemer e a tremer de frio no meio da sujidade.
Charles desceu da cama e vestiu-se em silêncio. Enquanto eu segurava no candeeiro, recortou com faca todos os pontos sujos do enxergão e do cobertor; levantou do chão Lakmaker com a delicadeza de uma mãe, limpou-o o melhor que pôde com palha tirada do enxergão, e pousou-o na cama arranjada, na única posição em que o desgraçado podia ficar; raspou o chão com um pedaço de chapa; dissolveu um pouco de cloramina e, finalmente, desinfectou-se e espalhou desinfectante por todo o lado.
Media a sua abnegação pelo cansaço que teria de superar dentro de mim para fazer o que ele estava a fazer(...)".